“Você não morreu: ausentou-se” — A morte em Carrascoza e Bandeira

Gustavo Diniz
3 min readNov 10, 2020

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A morte é um evento difícil de entender. O baque inicial que nos toma e transborda pelos olhos faz a vida parecer impossível após a notícia nos encontrar. Não importa o que veio antes, ou depois, naquele momento a notícia que nos toma é a de que nunca mais veremos aquele ente querido.

Seu pai não irá mais ligar-te para saber como estás. Suas mãe não irá pedir para que prepares um café antes que ela chegue do serviço. Seu irmão não brigará mais pelo controle da televisão. Seu amigo não o chamará para jogar futebol. A morte parece interromper ciclos que até ante ontem pareciam eternos.

Descobrimos, entretanto, que não é bem assim. Encontrarás seu pai, ainda que não sintas o caloroso abraço, quando ouvires os conselhos de sempre. Sua mãe quando assistires aquele filme de comédia que tanto ama. Seu irmão quando olhares para o guarda roupa e as tuas roupas que o serviam, agora servirão a outro. Seu amigo quando fores na praça em que costumavam conversar sobre a vida. Descobrimos, nesse sentido, que as pessoas não morrem, ausentam-se.

Dois textos primorosos me alertaram para esse fato, Carderno de um ausente de João Anzanello Carrascoza e o poema A Mário de Andrade ausente de Manuel Bandeiro. Em ambos a morte parece não ser o fim, mas uma forma de eternizar-se nas lembranças que restam em seus amigos e familiares.

A narrativa de Carrascoza entrega uma espécie de diário, um caderno confessional que o professor de meia idade escreve a sua filha, Beatriz. Receoso de não poder acompanhar os passos de sua filha, o professor passa a narrar seus momentos desde o nascimento. Com uma delicadeza ímpar e um tom quase confessional, Bia, como delicadamente é chamada pelo pai, no futuro saberá cada passo da maternidade ao seu primeiro aniversário.

É entregue ao leitor confissões e as inseguranças do pai, que procura ser preciso em seus comentários, vislumbrar o futuro e alertar Bia sobre as possíveis desilusões. Cada imagem construída parece ser palpável ao leitor tamanha a exatidão na escolha das palavras.

Um ponto crucial que escapa ao leitor desatento é a importância do modo como é descrito o relacionamento entre os pais de Bia. A mãe bem mais jovem que o autor do caderno é descrita de forma extremamente amorosa e romântica. A afetividade que transborda a diferença de idade e a generosidade dela em receber em sua vida este professor que já não tinha esperança de viver um amor novamente, ele vive.

No poema de Bandeira a morte surge como um anúncio inesperado, embora testemunhe o corpo e o ouça, sua alma recusa-se a aceitar. O eu-lírico consciente de que uma hora essa falta virá passa a andar por suas lembranças e pelos locais nos quais costumava encontrar o agora ausente Mario de Andrade. Na medida em que os versos vão surgindo, essa falta parece ser mais efetiva e melancólica.

“É sempre assim quando o ausente Partiu sem se despedir:
(Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que êle não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá no meu hotel.”

Eis a estrofe que liga ambos os textos, a morte anunciada como uma surpresa no poema de Bandeira é também uma surpresa no romance de Carrascoza. Espera-se evidentemente a morte pai. Ele espera, como confessa. Mas o que temos é o mal-estar da mãe, os desmaios que pareciam feitos do acaso revelam-se uma doença grave, a internação e a morte. Tudo isso confesso à Bia.

Mario de Andrade ausentou-se inesperadamente no poema de Bandeira, a jovem mãe da Bia também, no romance. E em ambos os casos apesar de mortos parecem vivos nas lembranças construídas, nos olhares por vezes dispersos como confessa Bandeira “Baterá na franja dos lutos de sangue./ Alguem perguntará em que estou pensando,/ Sorrirei sem dizer que em você,/ Profundamente.”, ou nas lembranças escritas pelo pai da Bia.

A morte ao invés de demarcação do fim parece ser oportunidade para a eternidade. A ausência é percebida na medida em que as lembranças tornam o falecido vivo.

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Gustavo Diniz

Estudante de Letras com dupla habilitação em Português e Alemão na Universidade de São Paulo. Apaixonado por literatura, futebol e política.