Quase da família: Uma análise dos papéis sociais desenvolvidos em Mariana, de Machado de Assis

Gustavo Diniz
7 min readMar 17, 2021

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Analisar um texto de Machado de Assis é, sobretudo, ter acesso às estruturas coloniais do Brasil do século XIX. Ter acesso às formas de produção e reprodução do escravismo, da exploração de classe e o modo como o sistema capitalista se organizou aqui onde o crítico e sociólogo, Roberto Schwarz, chama de periferia do capitalismo. Parte desse processo de análise está centrado no trabalho de observar mais do que enredo das obras machadianas, mas como a estrutura formal dialoga e dá resposta também à vida social do século XIX. Desse modo, analisar-se-á no conto Mariana publicado originalmente no livro Contos esparsos, a presença de dois aspectos fundamentais do texto machadiano, em primeiro lugar, o modo como a relação entre os personagens revelam uma estrutura de classe e em segundo como seu narrador dá luz sobre uma série de contradições presentes no desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

No Brasil, “homens e mulheres escravizados experienciavam o sistema a partir de lugares distintos, sendo submetidos à diferentes tipos de opressão”, o que destina às mulheres escravas, em grande medida, especialmente no modelo de escravidão Ibérico, o lugar do cuidado da casa. Essa relação, entretanto, não dava a elas nenhum tipo de privilégio em relação aos homens escravizados, pelo contrário, as violências contra seus corpos aconteciam de modo semelhante e em alguma medida mais cruéis, não sendo libertas de punições nem ao estarem grávidas. À mulher escravizada cabia o papel das tarefas domésticas e de reprodutora. Esse papel criou a narrativa de um tipo de proximidade por parte das escravas com seus proprietários, que era usada para legitimar a violência sobre seus corpos.

No conto a história passa a ser narrada pelo recém chegado da Europa, Macedo. Depois de quinze anos fora, o retorno dava-o a sensação de rejuvelhecimento, vislumbrado com as viagens e transformações no velho mundo, depara-se também com um Rio de Janeiro mudado, mas apenas na aparência, com novos hotéis e uma cidade que se movimenta, tudo isso fez em seu espírito “uma agradável impressão”. O encontro com Coutinho acontece por acaso, logo ambos decidem ir almoçar para pôr em dia as novidades.

A conversa sobre a vida segue, sobre suas posições sociais e seus empregos, quando um assunto embaraçoso, para Coutinho ao menos, surge, o do casamento. A história que todos ali sabem, é a de que iria casar-se com sua prima, Amélia. Todavia, ao ser questionado sobre o assunto é evasivo e inclusive demonstra uma certa irritação, com respostas curtas. Macedo percebe e resolve não mais incomodar o amigo, mas Coutinho resolve em tom de confidência contar o que houve. Para a surpresa de seus amigos revela que jamais amou e foi amado como fora por uma “cria da casa”.

Mesmo com o espanto de seus amigos por tal revelação Coutinho parece perder-se em seus pensamentos e começa a contar sobre Mariana, a escrava. Ele diz que

“[ela] não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que a situação em que se achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.

Esta fala revela algumas estruturas presentes na constituição dessa família, a primeira de que a escrava Mariana, de acordo com Coutinho, “era como se fosse uma pessoa livre”, ela “só” não podia aparecer para as visitas ou se sentar à mesa, ou seja, ela não era como se fosse uma pessoa livre. Coutinho exalta a inteligência da escrava, que inclusive sabia falar francês, conforme o conto revelará mais para frente, mas não por esse fato, e sim por de alguma forma saber pôr-se em seu lugar, aqui o adjetivo escolhido pelo narrador “inteligência”, pode ser substituído por consciência, Mariana era consciente de sua situação de aprisionamento.

Delimita-se nesse momento do conto o papel que cada um tem no mundo social, a escrava é colocada por Coutinho em uma posição de “privilégio”, mas a realidade mostra que o privilégio é na verdade uma forma de legitimação da violência da escravidão. Em segundo lugar, esse modo de tratar faz com que a família sinta-se cada vez mais dona do corpo de Mariana, fazendo com que as violências estruturais sejam suplantadas pelo simples fato de ser tratada minimamente como ser humano, mesmo que efetivamente não o fosse.

Parte fundamental das relações de classe no Brasil oitocentista, a “familiaridade” com a qual as relações se desenvolvem foi descrita por Schwarz, ao analisar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas:

“(…) Ao lado da norma liberal e com presença tão sistematizada quanto a dela, há aqui [em Brás Cubas] uma ideologia familista, calcada na parentela de tipo brasileiro, com seu sistema de obrigações filiais e paternais abarcando escravos, dependentes, compadres, afilhados e aliados, além dos parentes. Essa ideologia empresta familiaridade e decoro patriarcal ao conúbio difícil de relações escravista, clientelistas e burguesas. À condenação liberal da sociedade brasileira, estridente e inócua, soma-se a sua justificação pela piedade do vínculo familiar, cuja hipocrisia é outra especialidade machadiana.”

O que se percebe é que ao longo do conto, para Coutinho, em sua posição de proprietário, qualquer violência é justificada contra o corpo de Mariana. A liberdade da escrava de sentir afeto é exaltada por Coutinho num primeiro momento, quando esse afeto é para com alguém “de sua raça”, expressão do próprio conto. Mariana, entretanto, consciente de sua posição procura a todo momento fugir desse sentimento, em primeiro lugar figurativamente, isolando-se, depois de forma concreta.

Pouco se sabe a respeito do que Mariana de fato sente, ou não. Machado dá voz às contradições do brasileiras através de seus personagens, sendo eles dois, o recém e vislumbrado Macedo que se depara com um Rio de Janeiro em plena ascensão e desenvolvimento, caminhando para o futuro, ao passo que ouve passivamente seu amigo contar a sua violenta história de amor com uma escrava. Violenta não só pelos puxões e ameaças, mas violenta porque toda escravidão é por definição uma violência. E Coutinho, que admite-se encantado e deduz que sua escrava estava perdidamente apaixonada por ele, a ponto de fugir. Ela, entretanto, não tem voz. A conhecemos através de um olhar que vem de cima.

Nesse sentido, é possível observar o que Schwarz descreve no Brasil do século XIX como “Ideais fora do lugar”, título inclusive de um célebre texto presente no capítulo que inaugura seu livro Ao vencedor as batatas. Para o sociólogo “a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento (…)”, em resumo, ao passo que o Brasil se exaltava com a importação de ideias liberais vinda da Europa, com a independência e com novas relações de trabalho, convivia ainda com a escravidão, que não só era presente, mas era motor fundamental da economia e da sociedade naquele século.

Esse convívio com a contradição mostra-se presente no conto aqui analisado, ao passo que Macedo desembarca no Brasil, com um vislumbramento da modernidade no velho continente, deparando-se com um Rio de Janeiro moderno. Sua arquitetura, suas lojas todas pareciam inspirar-se nas ideias das quais ele conviveu em sua viagem, todavia, na conversa com seu animado a escravidão é tratada ainda com desdém, como se fosse um dado da natureza.

Os episódios de violência por parte de seu amigo são ouvidos sem qualquer tipo de contestação, Mariana fugiu em duas oportunidades e no fim comete suicídio para evitar aquele sentimento que seu dono insistia em chamar de amor, mas que era carregado por abuso e violência física. Mariana ao fim de sua vida, depois de vivê-la sob o jugo da escravidão, clama por compaixão e coloca a culpa “na natureza”, pedindo para que seu dono lembre-se dela.

No fim das contas, Mariana é o retrato de um Brasil que clama por modernidade, mas que ainda via no âmago de suas relações o atraso. Como expõe Schwarz:

“(…) Assim, posto de parte o raciocínio sobre as causas, resta na experiência aquele ‘desconcerto’ que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício — contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, contradições, conciliações e o que for — combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar”

De que chamar, senão anacrônico um Brasil que urge moderno no início do conto, mas cujo enredo principal está centrado ainda numa relação de atraso? Sob o retrato de um homem que não é um grande latifundiário, ao menos não há nenhum indicativo no conto, mas que exerce uma posição de domínio de classe sobre os escravos, Machado nos retrata um processo social presente no Brasil deste século.

Um processo de violências e poder cujo elo mais fraco, os escravos, ficam subjugados a seus donos, inclusive para se apaixonar. Um processo ideológico que colocou na cabeça daqueles indivíduos que o convívio com essa realidade é natural, retratado no parágrafo final:

“Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade”

A tristeza retratada não é pelo suicídio de Mariana, mas por um amor que não se concluiu, tristeza inclusive que logo passou. Ou seja, uma história triste para Coutinho, trágica para Mariana, mas que pode ser facilmente superada pelos pés das damas que desciam dos carros. O Brasil retratado por Machado parece sempre restituir a mocidade, o tempo inteiro voltando ao passado, como se o futuro fosse distante demais.

Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Mariana.In: CHAUVIN, Jean Pierre (org.). Machado de Assis contos essenciais. 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2017, p. 551–566

MACHADO, Maria Helena P. T. Mulher, corpo e maternidade. In: SCHWARCZ. Lilia M. e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário de escravidão e liberdade. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 335–340.

SCHWARZ, Roberto. Feição social do narrador e da intriga. In: Um mestre na periferia do capitalismo. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 70–83.

_____. Ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 9–31.

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Gustavo Diniz

Estudante de Letras com dupla habilitação em Português e Alemão na Universidade de São Paulo. Apaixonado por literatura, futebol e política.