Mas… e as micro-histórias?

Gustavo Diniz
3 min readAug 14, 2020

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O que um livro sobre o fim da União Soviética tem a ver com a realidade de jovens no Complexo do Alemão?

A guerra acabou, o país se libertou, mas e as pessoas? Você já parou para pensar sobre isso? Eventos de grande magnitude quase sempre se encarregam de um número de mortes tão exorbitantes que parece mais confortável tratar aos milhões do que pensar sobre cada família que comprará uma escova de dentes a menos, que não comprará um bolo uma vez ao ano para celebrar a vida de alguém, afinal, ela foi ceifada. Se tratamos a vida como números, como ficam as famílias?

Sempre me intrigou ao ler sobre grandes acontecimentos como os impactos econômicos e políticos são tratados aos detalhes, sobre as famílias da elite sabemos todos os embrolhos, quase como se fossem nossa própria família, mas e as micro-histórias? E as pessoas comuns que tiveram suas vidas atravessadas por um caos social ao qual elas não tiveram nenhuma culpa, como ficam?

Retratar essas micro-histórias é exatamente a proposta de Svetlana Aleksiévitch, em O fim do homem soviético. O livro rendeu a autora um prêmio nobel e não é de se espantar. A exatidão com que colhe os relatos que a princípio são extremamente diferentes, com pessoas diferentes, que ocupavam posições sociais diferentes, mas que lidos como estão postos dão a impressão de pequenos fragmentos de algo muito maior, a União Soviética, é fascinante.

A autora busca mostrar através dos relatos como a revolução Russa criou não só um país, mas uma mentalidade, uma consciência, um sujeito soviético. Esses sujeitos que nasceram sob o regime não só reproduzem os costumes aprendidos, mas também ficaram perdidos após a queda do muro de Berlin em 1991.

Essas micro-histórias vão de uma senhora contando sobre o costume que os vizinhos tinham de ir conversar na cozinha sobre qualquer assunto enquanto cozinhavam, ou comiam, para tentar driblar a censura que os próprios cidadãos soviéticos se impunham. Ou como algumas pessoas tinham a esperança de “entrar na modernidade” com o fim do regime socialista, ao passo que outras estavam completamente desesperançosos a ponto de não saber como viver com o ele. O fim da União Soviética representava seu fim, enquanto sujeitos.

O fato é, a sensibilidade do livro está em demonstrar como eventos de grande magnitude impactam na vida social de forma micro, alterando pequenos costumes, pequenas atitudes como o simples ato de conversar na cozinha, mesmo com pessoas com pessoas que não estavam tão por dentro da vida política do país, afinal de contas, estando ciente ou não, a vida é política e irá te impactar de alguma forma.

Nesse sentido, esses grandes eventos criam uma consciência e moldam a identidade dos que estão sujeitos a eles. Saindo da realidade russa, pode-se falar sobre como a desigualdade em terras brasileiras molda a identidade dos que estão submetidos aos perversos meios da elite econômica e politica de sustentar o sistema capitalista.

O projeto Museu dos meninos busca dar voz a jovens residentes do Complexo do Alemão, no Rio Janeiro. A princípio o objetivo é falar sobre seu dia a dia em pequenos relatos, o que temos é uma série de relatos falando sobre racismo, violência e LGBTfobia e, portanto, como esses marcadores sociais moldam suas identidades enquanto homens e interferem na performance de suas masculinidades.

Afinal, o que é ser homem quando sua auto-estima é afetada pela violência psicológica do racismo? Como expressar seus sentimentos quando aos seis anos de idade, já “homem da casa”, se convive quase diariamente com o som das balas que atravessam as favelas? O que é ser homem quando o que se espera de você é algo que você não pode performar?

Esses são os desafios expressos em pequenos relatos, eles nos mostram que assim como num evento como o fim de um regime que durou décadas, a convivência diária com a desigualdade molda as identidades e as performances de identidade, molda vida de pessoas comuns, em situações comuns. A história não é nada além de micro-histórias.

Projeto Museu dos meninos:

https://www.museudosmeninos.com.br/

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Gustavo Diniz

Estudante de Letras com dupla habilitação em Português e Alemão na Universidade de São Paulo. Apaixonado por literatura, futebol e política.